Fotógrafo registrou dor, saudade e uma forte esperança no percurso de refugiados e migrantes no Brasil

Fotografar e ouvir histórias de pessoas em busca de um novo lar tem sido algo marcante na vida do italiano Antonello Veneri, que há doze anos escolheu o Brasil como seu lar. Por aqui, o fotógrafo e jornalista vem registrando através de suas lentes e olhar apurado, relatos de centenas de pessoas que buscam um espaço, ou na verdade, o recomeço de uma vida. Atingidos por uma forte crise social, política e econômica em seu país de origem, refugiados e migrantes venezuelanos encontram no Brasil oportunidades de trabalho e, acima de tudo, dignidade para seguirem suas vidas. 

A família de Alfonzo (centro) é um dos destaques da exposição Acolhidos. A família foi acolhida para trabalhar no Distrito Federal

Com o trabalho de instituições que atuam na temática do refúgio e migração junto à força-tarefa humanitária da Operação Acolhida, agências da ONU, sociedade civil e, com o apoio do setor privado, famílias inteiras estão conseguindo recomeçar suas histórias, por meio de ações ligadas a direitos básicos como acesso à saúde, educação, alimentação, moradia e trabalho, sem deixar para traz seus os seus costumes e suas raízes. “Todas as histórias são diferentes, mas em cada uma sempre tem algo parecido. Dor e saudade, mas também uma forte esperança”, reflete Antonello.

Na Venezuela, o economista Alfonzo foi professor universitário. No Brasil, conseguiu um posto para trabalhar em restaurante em Brasília

A arte de Veneri está em cartaz na exposição Acolhidos: o percurso da Venezuela à integração no Brasil, na Torre Matarazzo (avenida Paulista, 1230, Torre Matarazzo), retratando o cotidiano de diversas famílias que também escolheram o solo brasileiro como morada. Em 120 imagens, o público pode conhecer os bastidores e como é a vida de quem foge de crises, conflitos e desamparo, deixando para trás familiares, casa, trabalho, escola… A exposição conta ainda com um espaço educativo e a apresentação de vídeos com depoimentos do fotógrafo e de agentes de campo que realizam trabalho humanitário nos centros de acolhida gerenciados pela AVSI Brasil e Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), em Boa Vista. No mês dedicado aos refugiados, quando se comemora o Dia Mundial do Refugiado, no dia 20, a mostra lança luz para um tema delicado e atual, por conta da guerra que assola a Ucrânia e mobiliza países e organizações que há anos atuam em zonas de conflitos levando comida, remédios, entre outras necessidades. 

A estrutura das carpas (como são chamadas as habitações nos centros de acolhida), é reconhecida como exemplo de arquitetura segura e sustentável

O nome da exposição é inspirado no projeto social Acolhidos por meio do trabalho, implementado pela AVSI Brasil e Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), com recursos financiados pelo Escritório de População, Refugiados e Migração (PRM) do governo dos EUA. A edição de São Paulo tem o patrocínio do ACNUR e da Fundação Bernard van Leer (FBvL), e tem o apoio institucional do Consulado da Itália no Brasil, Organização Internacional para as Migrações (OIM), Rede Brasil do Pacto Global, e da Casa Civil da Presidência da República, que coordena as ações da força-tarefa Operação Acolhida.

Richard e sua família foram acolhidos no abrigo para refugiados e migrantes venezuelanos Casa Bom Samaritano, em Brasília, para ele trabalhar na região do DF

Em São Paulo, a exposição integra o calendário cultural do CCBB SP (Centro Cultural Banco do Brasil), parceira na realização do evento, e está aberta ao público até 26 de junho, todos os dias, incluindo sábados domingos e feriados. O evento é gratuito e a classificação etária é livre. O espaço prevê todos os protocolos de segurança e controle preventivos à Covid-19.

Gravida, Yoskarli foi recebida no centro de acolhida Pricumã, Boa Vista (RR).

Confira a entrevista com Antonello Veneri

O que te inspirou a registrar um trabalho voltado para causas sociais? 

A fotografia documental faz sentido se é voltada ao encontro com o outro. Desde criança sempre gostei de conhecer pessoas e histórias especiais, que tivessem algo de vibrante. A profissão de fotógrafo e jornalista proporciona isso. Assim como de contar, através das imagens, a nossa interpretação do mundo.

Qual foi o maior desafio enfrentado durante as viagens? 

Para o projeto fotográfico “Acolhidos”, viajei por mais de 16 mil quilômetros, entre Santa Helena de Uiarén, na Venezuela, passando por Roraima, Distrito Federal, Santa Catarina e Salvador. Passei dos 35 graus, de Boa Vista, ao menos 1 grau, de Santa Catarina. Em cada lugar encontrei, conversei e fotografei centenas de pessoas. Tudo isso no ano passado, em plena emergência da Covid-19, mas quando penso nos desafios que esta população migrante enfrentou, vejo que a minha viagem não foi tão complicada. 

Alguma história te tocou mais? 

A história da Yoskarly, jovem mulher grávida que encontrei na fronteira, e depois em um abrigo de Roraima. Me considero um ouvidor profissional, então passo muito tempo escutando histórias. Me tocaram especialmente as histórias dos idosos que tiveram que deixar a própria casa, o próprio país. Todas as histórias são diferentes, mas em cada uma sempre tem algo parecido. Dor e saudade, mas também uma forte esperança

E como era o seu contato inicial com as famílias retratadas na exposição? 

Uma boa parte dos registros de “Acolhidos” foram os retratos, então montava num tripé, um pequeno fundo preto nos próprios centros de acolhida, em Boa Vista, e convidava quem queria ser fotografado. Quase sempre uma enorme fila se formava, porque retrato é coisa séria. Na segunda parte da viagem, no Sul do Brasil, nos lugares onde os venezuelanos conseguiram trabalho formal, a partir do projeto social da AVSI Brasil, pude documentar a vida cotidiana destas famílias

Como a sua arte pode despertar uma conscientização sobre o papel da sociedade sobre este tema? 

Através das fotos, narro histórias para quem estiver disposto a escutar e vê-las, mas não me considero artista. Li uma entrevista da atriz Tilda Swinton em que diz ‘que mais do que homo-sapiens somos homo-narrans’. Adorei. Somos homens-narrantes. Se formos pensar, a narração atravessa a história do homem, das antigas mitologias até as novelas. O ser humano, especialmente durante a infância, adora ouvir histórias. Talvez o papel da arte e da fotografia seja de manter viva a curiosidade que recebemos de presente quando nascemos

Pensando nas crianças, grupos escolares, como as obras podem tocar o futuro do país? 

A exposição em Brasília, no ano passado, recebeu muitas crianças e escolas, e reparei logo que observavam especialmente as fotos onde havia outras crianças. Tinha uma empatia espontânea. Acho que é extremamente importante elas entenderem que existem outras crianças em situações diferentes da sua realidade. 

Em Brasília foram mais de 15 mil visitantes, algum depoimento/retorno do público marcou mais? 

Muitas pessoas se emocionaram em Brasília. Eu e os monitores gravamos depoimentos lindos. A exposição tem muitos retratos, então o público pode olhar e ser olhado pelas fotos. É uma troca visual muito intensa, olhos nos olhos.

Em SP, a exposição estará em cartaz na principal avenida da cidade, local de grande concentração de pessoas. Acredita no potencial de que as obras possam despertar ainda mais uma conscientização do público sobre a causa? 

Sim. Vai acontecer naturalmente para quem visitar a exposição livre de pré-julgamentos e abertas para refletir sobre esta realidade.

O tema refugiados ganhou ainda mais destaque por conta da guerra na Ucrânia. Quais reflexões podem ser feitas a partir da exposição e dos relatos? 

Hoje li um artigo onde o ACNUR estima que em 2022, pela primeira vez, o número total de pessoas forçadas a fugir da própria casa, vai ultrapassar a marca dos 100 milhões no mundo. Um número impressionante. Imagina se metade da população brasileira fosse obrigada a abandonar a própria casa. Tem a Ucrânia, tem a Venezuela, mas também a Myanmar, o Burkina Faso, a Nigéria, o Afeganistão, a República do Congo…

Segue trabalhando com o tema em outros registros? 

Sim, seguindo o caminho de homo-narrans. 

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